terça-feira, 7 de junho de 2011

Vem

Mordeu o lábio inferior e com dois dedos abriu caminho por entre o estore da janela do quarto, espreitando a rua. Lá estava ele. Sentia-se cercada por um homem imperfeito. O peito rufava em sobressalto. Num estalar de dedos conseguia acumular-lhe uma pilha de defeitos. Não aceitar a mão na rua era o pior de todos, mas também se revelava bruto aos domingos. Menos incómoda era a pose de fera em posição de ataque sempre que ao lado dela apareciam amigos e ex-namorados - o ciúme dele oferecia-lhe um sentimento de pertença. Era reconfortante. Também a excitava a ideia das masmorras. A banda desenhada cedo lhe fizera saber que por ali passava qualquer princesa digna de o ser - porque raio haveria de ser diferente com ela? O cárcere e a ilusão de haver um herói, algures, para a salvar, eram inteiramente do seu agrado. Na melhor das hipóteses seria disputada por dois homens na qualidade de pedra preciosa. Sobre as virtudes dele já ela se fazia entender através do próprio corpo, suado de tanta imaginação, e preferia não as estragar com palavras. Gostou de pensar que nunca lhe seria possível ver-se totalmente livre dele. Puxou o estore a metade da visibilidade e soltou o nó da toalha à volta da cintura, afastando-se lentamente, nua. Deixou-se ver. Foi à casa de banho e regulou as torneiras para um banho quente. Perfumou o pescoço. Dirigiu-se à porta de entrada e destrancou-a, deixando-a entreaberta. Voltou à casa de banho. Entrou na banheira. Devagar. Ligou o rádio na altura em que passava a canção certa. Abençoou o momento. Por instantes lembrou-se da mulher dele. Interrogou se naquele momento a senhora cornuda teria interrompido o trabalho e segurado uma pequena moldura com a fotografia de família que exibia na mesa do escritório, adorando-a e dando graças ao Criador com C grande pela vida tranquila e aborrecida que levava junto do bom marido e dos filhos adolescentes e palermas. Da porta de entrada soou o clique do trinco. Ouviu passos. Aproximação. O que lhe pareceu soar a um anel roçou a porta quase fechada que os separava. Uma, duas vezes. Depois... nada. Quem por ali estivesse deteve marcha e som. Ausência de movimento. Ela tremia de dúvidas e escavou fundo até encontrar tesão e pânico. Respiração em suspenso. Sem saber quem permanecia do outro lado da parede, ela devolveu ar ao peito e atropelou o silêncio: “vem.”

5 comentários:

i disse...

há pessoas que sabem escrever, caraças!

Ísis disse...

À tanto tempo que não ouvia esta música :) Gostei do texto.

Rui Coelho disse...

(L)

Mars disse...

Tão bem escrito... Gostei :)

Rui Coelho disse...

;) bem vinda ao barraco escocês