sábado, 29 de dezembro de 2007

Sonho de uma noite de Inverno

Sugestão de acompanhamento musical:
As time goes by - Dooley Wilson

Vivi – Avó
Maluquinha – Mãe
Pai – Pai
Miguel – Irmão
Rui – eu
Carlos – Tio
Olga – Tia
Carlitos – Primo-girafa mais velho
Ricardinho – Primo-girafa mais novo

O ar estava saturado. Não me lembrava de uma véspera de natal tão pouco véspera de natal cá em casa, do pouco que a minha memória ainda não foi bebida.
Os fritos, outrora feitos no dia 23, não deixavam qualquer tipo de rasto sensorial. A coisa não melhorava no que toca a embrulhos: estavam reduzidos a menos de metade face a 2006 e inclusive a minha conta já andava a ser consumida há algum tempo. Embrulhá-la-ia a minha mãe, horas mais tarde e perto da ceia. Para fechar o quadro anti-natalício, estavam já as janelas fechadas como acto da tolerância zero que temos para com o entardecer portimonense (seguramente o mais quente da história para 90% do país invernil) e a casa deserta.
A nossa casa na véspera de natal deserta e com as janelas fechadas.
Os motivos eram vários. O meu Pai ainda tinha dois clientes no bar e de lá parecia não conseguir saír; a Maluquinha passara a manhã no ginásio e estava com uma gripe histérica, patologia a que chamarei "esquizofrenia natalícia"; o Miguel tinha uma ressaca dantesca em cima e encarava a descida do quarto para a cozinha como sair à noite no Porto; a Vivi, eterna mãe do nosso natal, acabara de regressar das urgências do hospital Barlavento - com dores e rija que nem o pêro do outro (de acordo com os médicos). Perante tamanho arco-íris, corri ao telefone e liguei ao meu tio Carlos.

- Moce, inda `tas ém Ólhão?
- Tão cabeçude, sim `tô de volta das sapatêras.
- Ótime. Téns Charlie Parker?
- Ténhe.
- Téns Chet Baker?
- Ténhe sim, hóme.
- Téns Gillespie?
- Ténhe éss`s gajes tôds.
- Na os dêx`s ém casa atãum, té lógue.

Tinha bem presente que, até os meus primos começarem a dar pontapés na porta (forma como – carinhosamente - anunciam a sua chegada sempre que vêm cá a casa), haveria um buraco silencioso de 60 e tal quilómetros entre Olhão e Portimão que teria de ser tapado a todo o custo. Aos meus olhos, então, senti que tinha a cumprir uma missão: tornar uma tarde profundamente chata num magnífico e postiço natal. Convenhamos, por vezes ninguém tem mesmo culpa se as coisas não correm como o esperado e então alguém tem de, por e simplesmente, por as coisas a funcionar. Foi o que tentei.
A primeira etapa passou por correr à sala e sintonizar a rádio na antena 3. Pela casa fora, durante cerca de 15 minutos, ouviram-se músicas de natal góticas, techno e de heavy metal. Não era bem aquilo que tinha em mente. O passo seguinte foi invadir a cozinha e ligar a televisão no Cirque du Soleil, não exactamente para que o modo vesgo tomasse conta dos nossos sentidos mas antes para borrifar a palidez daquelas paredes com música cheia de magia. E por fim, ganhei coragem e sentei-me à mesa para ajudar a minha engripada mãe na cozinha (sem o fazer a duas divisões de distância, a despachar como de incompetente costume). Descasquei alhos até o Carlos chegar mais os míudos e se este raciocínio deixar alguém na encruzilhada “ele descascou tantos alhos assim ou é simplesmente um nabo?”, pois que saibam a nobreza do meu carácter ao confessar o que a Maluquinha me disse, logo que ofereci o valor dos meus préstimos: “descasca aí duas ou três de cabeças.”
Pontapés na porta, chegaram.
Para variar muito pouco, os meus tios trouxeram na sua carripana um centro comercial inteiro de prendas e, com a nossa ajuda, despejámos aquilo junto à árvore de natal. E passámos ao jazz.
Ele não se esqueceu do nosso grunhido telefónico e trouxe 5 ou 6 colectâneas com os grandes mestres do bop, mais um disco do Brian Ferry. "Mas que raio estaria aquele mel peganhento a fazer ali..", pensei. A resposta chegou logo que o cabeçudo do Carlos me viu com aquele álbum na mão, olhando feito gnú para a cara de coelhinho abandonado do senhor Ferry, estampada na capa.
Começou por me dizer que tudo ia bem e que havia uma malha espantosa nesse “As time goes by”. Demos corda ao bicho. “Carrega aí na número sete não é esta experimenta a dois mas vai daí acho que é e portanto será definitivamente a quatro embora não seja e tenha acertado ao lado então esquece vamos tomar uma cervejinha e ouvi-lo todo que é muito bom”.
Varremos este disco de covers dos anos 30 a dançar pela casa, e ao perceber que os meus pés se atropelavam com jazz do Brian Ferry, percebi que o natal tinha, enfim, chegado. Estávamos a dançar Brian Ferry. Missão a caminho do sucesso.
Entretanto a cozinha entrara num alvoroço que, pessoalmente, me agrada. A Olga e a Maluquinha de volta da comida enquanto descascavam na vida dos outros, os míudos ajudavam-nas mas não descascavam e o meu pai e o Miguel eram os actores principais de uma trama cuja banda sonora era dançada por mim e pelo cabeçudo do Carlos - com o volume perto do máximo.
Não demorou muito até a Vivi irromper pela sala adentro, pregando que "não admitia música de putedo". O Miguel acabara de lhe dizer que música "clássica" tinha essa matrícula atrelada e a Vivi encavalitou-se no Renault (canadianas) e rebentou em cima de nós. Que não admitia "que se ouvisse putedo" e aliás seria música pimba a salvação. Todos nós sabemos que o Miguel se estava a meter com ela, mas a minha avó é muito querida e não percebe as coisas. Eu e o Carlos estávamos a bater o pé e assim continuámos, rimos muito e corremos atrás dela para lhe dar beijinhos e despentear o cabelo novo.
A Maluquinha acha-me esquisito. Desde que saí de casa rumo a estudos de boa vida em Lisboa que ela me acha cada vez mais esquisito. Naquela noite era porque oiço jazz e não pagaria para ver Scorpions. A Olga, mulher do Carlos, foi para Lisboa uns dias antes com 3 amigos para ver os Scorpions e chegou a casa às 04h00 - com o Carlos a hibernar cheio de fé. O meu tio chama-lhe lustrosa e andam sempre à zaragata mas está tudo muito bem até – aparências aparte.
O Carlos acha que o que levamos da vida são prazeres como os de comer, beber e “cobrir”. Este último, vontade exacerbada de um amigo seu nos últimos tempos e denunciada pelo próprio Carlos à mesa, seria, de acordo com a minha avó, bem melhor que “ganir”. E com vontade de “ganir” estava a minha tia Ana Paula, o que a minha mãe ficou a saber quando falou ao telefone com ela para desejar bom natal à família que está em Espinho. "Ganir fazem os cães e nós não somos animais que isso não tem jeito nenhum"! – disparava a Vivi enquanto defendia que a vontade de "cobrir" do amigo do Carlos “tinha mais preceito” que a de “ganir”.
O debate sobre jazz continuava entre mim e o Carlos, que tinha toda a vontade em me apresentar um tal combate no Savoy Hotel entre o Chuck Webb e um amigo de sorrisos jazzísticos. Não encontrámos coisa nenhuma que se parecesse sequer com isso.

O pessoal do jazz nesta altura sorria muito, é qualquer coisa.

Finda a ceia e após uns fantasmas mudos terem planado sobre a nossa mesa, o Carlos perguntou que se bebia naquela casa. 10 segundos volvidos já eu lhe trazia uma bela amarguinha de 17 anos que tínhamos ido buscar à cave fazia poucos dias. E que não sabia lá muito bem. Até acho que podia ter doenças. Mas bebemos sem hesitar até que começámos a falar de traques.
A Maluquinha tem um trauma com traques, porque quando era menina dormiu muitas vezes entre familiares de idade e que perfumavam. Ela não gosta que perfumem e também não gostou quando a Vivi corrigiu que não era traque mas sim peidinho.
Muito tonta, a minha mãe. Fica bêbada com dois golos de vinho. Mas isso só dura 10 minutos. São 10 minutos de National Geographic. Não consigo explicar melhor.
O Ricardinho já é escritor. Ou pelo menos, assim pensou a Vivi quando pelas 02h – mesmo antes de descer aos seus aposentos – teve um encontro imediato com “A boca do Inferno”, do Ricardo Araújo Pereira e dirigiu-se-me num doce “Oh filho `tá aqui o nome do Ricardinho, ele já escreve?” O Carlos regressara, entretanto, a um tintol São Domingos da Bairrada e foi esticado no sofá que aterrou num sono profundo, após uma extenuante luta de cócegas com o Ricardinho. Seriam, talvez, 23h37. O meu tio adormece sempre antes da 00h00 na noite de natal. O irmão mais velho do Ricardinho é o Carlitos e está triste com as prendas que recebeu da mãe. Tem 16 anos e eu também já os tive pelo que, ao reparar no facto, solidarizei-me com o moço e disse-lhe “`tás na idade parva. Também já passei por isso, hás-de sobreviver”.
Ele ficou pior.

Tenho a garganta armada em parva. O Ricardinho parece uma girafa, cresce que não pára.
- `Tás pequeno! – atiro-lhe
- Tenho onze – devolve-me
Yabadabadu.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O Pátio do Linólio

Sugestão de acompanhamento musical
Getting Better - The Beatles

Saí de um curso onde eram ministradas aulas de cabeçada anti-sanguinária a todos aqueles que gostam de arriscar a sua vida pela dos outros. Falo da profissão de duplo.
A sala era pequena e os alunos, é bom dizer, jamais sangravam independentemente da vontade partilhada para que tal acontecesse. E vontade, garanto-vos, não faltou naquele recinto. Foi no calor desta candura que – num assomo de Heidi – aproximei-me da janela e vi o Linólio. Aquela figura esbranquiçada, distribuída por 3,14 metros de pilantrismo – feio como um abutre feio, raíz de sebo, babuíno. O Linólio, no pátio.

Atenção que talvez seja este o momento em que tenha de me retratar, ataques pessoais deste tipo não se coadunam em nada com o espírito deste Castelo.

Talvez esteja a ser duro com o Linólio. Talvez nem seja este o seu nome e a privacidade da pessoa em causa esteja salvaguardada. Talvez me digam que não é assim, falha no sistema – erro tipográfico. Aceito tudo isso embora tal não invalide o facto de o rapaz ter uma falha entre os dentesguerreiro (importa dizer que nada tenho contra a mesma) pela qual são constantemente projectados esguichos de saliva em massa contra o rosto dos seus interlocutores. Julgo que propositadamente, tal a mira.
- Ah tenho dentesguerreiro..
Desculpas! Todos nós conhecemos os Linólios que por aí andam, a fazer uso dos seus poderes maléficos contra pessoas indefesas. Quantas vezes já não tiveram a amabilidade de ceder passagem a um Linólio, numa carruagem de metro inundada por pessoas ávidas de sair na estação seguinte – sentindo a posteriori o agradecimento dele na pele, com saliva? Talvez nenhuma mas isso também não vem agora ao caso.
Entretanto a bola, com a qual eu estava a jogar ao pé da janela, tombou para o pátio. Olhei para trás, fitei os meus colegas e como sugeri de entrada, pedi desculpa pela urgência em retirar-me sob o pretexto de estar duas horas atrasado para um jantar de família. Ao sair porta fora, voei pela janela.
A viagem foi curta e, para ser honesto, pouco entusiasmante. Lembrei-me da cama voadora do Kusturica em “A Vida é um Milagre”, na certeza de que tudo era possível e que faria turismo por várias culturas de insectos acolhedores. Mas tudo ficou longe disso.
Desci do edifício onde eram ministradas aulas de cabeçada anti-sanguinária que nem uma folha de amendoeira, planando lentamente ao largo daquilo que me pareceu uma zaragata entre vespas. Não queria acreditar mas, ao chegar junto da confusão, confirmei que os ânimos estavam exaltados e discutia-se qual – entre elas – teria o “ferrão mais capaz”. Intervi.

- Olhem, não pude deixar de reparar que vocês estão a discutir qual das duas terá o ferrão mais capaz.
- Fantástico Einstein, agora salta daqui para fora que eu sou a vespa do ferrãopetit e mordo quando ladro.
- Não ligues forasteiro, ela é tipo abelha. Uma mordidelazinha e bate logo as botas, é tudo fachada. Eu é que sou a vespa do ferrãopetit.
- Eu!
- Eu!
- Calma, calma meninas. Só passei para vos dizer que enquanto vós putas andais aqui a discutir quem é o chulo, acabei de ver o Linólio alí em baixo. E olhem que ele hoje parece estar com o salão dos dentesguerreiro particularmente aberto, dia de perigo público.
- Contra os quais nada tens, correcto forasteiro? Pois seja, que já consta em alguns círculos de insectos que aqueles dentes são mais letais que o meu ferrãopetit! Ao ataque! – e lá foram as vespas, testando a capacidade do seu ferrão num fim chamado Linólio.
Já eu, pelo que me tocou, aterrei no terraço de um piso onde encontrei um bar parecido com o da minha universidade. Entrei e avistei caras familiares à minha vida académica: Pus-me na conversa com o J.P.C (que comia uma sopa de aspecto duvidoso), a S. (que bebia café) e o namorado (que estava atrás dela). A avó da S. acha que eles não andam, pelo menos a neta assim o põe.
Ao grupo juntou-se também o P., que fez a barba e agora noto que por trás dele, no enfiamento da sua encerada popa, encontra-se o J.A a trocar argumentos com pessoas aparentemente daquelas assim muito importantes. Em pano de fundo, um ecrã mudo e gigante com imagens de Underworld.
De seguida reencontrei-me com a rua, agora deslinolizada pelo ferrão das vespas. Acabei por sair pelo rabo do edifício sem rumo algum e deparar-me com uma ladeira empinada que descia para onde me convinha (pois subir cansa e não me apetecia). Manifesto pró-preguiça. Contornei a curva e lá em baixo, imponente, o ferrari (Renault Clio) da minha avó liderado pela filha e desprovido de mais soldados. A minha mãe no ferrari, à minha espera com ar reprovativo, a minha mãe embora eu tenha mentido ao pessoal do curso sobre o jantar. “Que raio fazes na minha mentira?”, penso –
Passo por ela, digo que “cheira a anos 90” e é com a rua deserta que me apercebo de que o sol devia andar com insónias visto serem 22h00 e de escuridão nem sinal.
Sinto o bolso vibrar, vou ao motivo electrónico e mensagem da Sónia. Sorrio, diz que acordou e fico na dúvida. Será que ontem ela me sussurou qualquer coisa ao ouvido como “força do mal” ou está mesmo a fechar este sonho? Tal é a dúvida daquele cuja mão direita tremeu, à instantes, ao despejar chocolate em pó no leite - ainda que o mesmo tenha atracado no cais devido.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O Duelo

Sugestão de acompanhamento musical:

Guilty - Yann Tiersen

É que hoje cheguei a casa e vi um pombo a fazer-se a uma fêmea no terraço do prédio diante do meu, insinuando-se com a cabeça junto à plumagem cinza-clara do seu peito e logo começaram aos trambolhões. Ora toda esta rua seria libertinagem animal não fosse o caso de outro pombo, chamemos-lhe "Corno", ter aparecido diante deles em voo picado e com uma linguagem corporal ameaçadora. Não havia duvidas, tínhamos Corno. Os "pombinhos" largaram o trambolhão e o macho (Jumentino) sugeriu à fêmea (Jumentina) que se afastasse, pois “aquilo seria assunto de Pombos".
Pombôs - aliás - visto serem franceses.
E foi com o bico coberto de baba – que poderia ser de raiva mas aliás era apenas pouco cuidado na relação entre saliva e francês - que o Jumentino se virou para o Corno e ambos sentiram o peso do momento. Prédio abaixo, apenas a dois andares daquele que tinha todo o aspecto de se vir a tornar o teatro de um duelo texano, um animado grupo de jovens praticava um ritual sonoro a que poderemos chamar de "sirene esquizofrénica de bombeiros". O grito colectivo era vomitado de uma janela bem espreguiçada, para onde era sugerível que contemplássemos o interior charmoso de um ar não respirável, Lisboa como Londres. Mas sem fog, nem Londres. Nem charme. Era mesmo só muita droga.
Seria então aquela melodia, tão doce, afinal um prenúncio cirúrgico de tragédia vindoura? Haveria duelo de pombos pistoleiros? Será que o Chavéz ouve Kings Of Convenience?
A resposta a estas dúvidas chegou num acordo tácito sobre os trâmites do duelo shakespeariano pelas penas da pomba amada, que aliás nunca foi tida nem achada no assunto. Ambos voltaram as costas ao respectivo opositor, recuaram 10 passos e a Jumentina chorava com a alma realizada por ter a sua plumagem disputada pelo Jumentino e pelo Corno. O que se seguiu foi intenso, profundo, dramático - foi épico. Ambos foram ao chão buscar uma pedra afiada e desenharam o jogo da macaca no terraço do prédio diante do meu, batalhando em seguida por um lugar no coração da Jumentina através da prática do jogo referido. Petrificada com a falta de músculo evidenciada pelo momento, afinal pouco romântico, deu meia volta e voou para Norte. "Onde ainda se fazem pombos como antigamente" - atirou - enquanto fugia "da macaca" num dia triste, em que o sol faltou ao trabalho. O facto não pareceu importar muito aos pombos beligerantes, que se mantiveram a brincar o resto da tarde e a dividir palmadinhas na cauda - “ah, malandro, falhaste um saltinho alí” - bastante denunciadoras de uma crescente e comovedora cumplicidade entre ambos. E já que falo nisto, parece-me que ainda ali estão mas esconderam-se atrás de qualquer coisa cujo movimento de silhueta lembra um pêndulo ininterrupto.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Esquerda e Direita

Sugestão de acompanhamento musical:
sapateado, gaita e tambor (experimentem tudo ao mesmo tempo)

Alguns anos de convívio e espionagem social e uma hora de sonhos em transportes públicos dão-me o desplante de, aos 24, julgar que descortino tendências de identidade no espectro direita-esquerda, radicalismos à parte. Nunca fui muito de rótulos mas este caso merece caricatura.
Como tenho para mim que a política é uma área que emana um odor duvidoso, invisto pelo quotidiano comum das nossas vidas. Na certeza de que me engano muitas vezes e frequentemente tenho dúvidas, o auditório gigantesco de três leitores do nosso Castelo é evidentemente livre de não concordar com as propostas adiante formuladas:

O indivíduo de direita ganha mais dinheiro que o de esquerda.
O de esquerda ri-se mais vezes.
O de direita gosta de filmes de terror.
O de esquerda não gosta de chuva.
O de direita quando tira a carta pensa “um dia vou ter um porsche ou um ferrari”.
O de esquerda gostava de tirar a carta e, conseguindo-o, parece-lhe bem um carocha.
O de direita é do Benfica.
O de esquerda diz ser do Sporting mas só conhece o Ricardo (que já lá não está).
O de direita utiliza “eu” em 76% das frases.
O de esquerda não faz a cama há dois meses.
O de direita tem os livros arrumados por ordem alfabética de acordo com os títulos.
O de esquerda não sabe onde eles andam.
O de direita ganha ao de esquerda num sprint de 60 metros, ao snooker e no PES.
O de direita estuda economia e/ou direito.
O de esquerda cozinha bem.
O de direita não sai porque tem uma borbulha na testa: “ Estou engripado/a”.
O de esquerda está engripado, dói-lhe a cabeça e sai na mesma.
O de direita ouve música que lhe entristece ou deixa furioso.
O de esquerda ouve música que não passa na rádio, nem na televisão.
O de direita gosta de ler coisas que existem.
O de esquerda gosta de ler coisas que não existem (para os de direita).
O de direita vai ao ginásio.
O de esquerda gostava de ir, mas aborrece.
O de direita compra revistas de carros ou moda consoante sexo ou inclinações afectivas.
O de esquerda lava a cabeça menos vezes.
O de direita espreita-se ao espelho com maior frequência que o de esquerda.
O de esquerda goza com o bigode do Hitler.
O de direita não acha piada ao do Che Guevara.
O de esquerda tem 45 garrafas de água espalhadas pelo quarto e não sabe porquê.
O de direita adormeceu a ver “uma verdade inconveniente”, em frente ao computador.
O de esquerda bocejou muito no cinema, mas aguentou-se até ao fim.
O de direita tem 756 fotos no hi5 e 99% são de si mesmo, sozinho ou cortando a foto.
O de esquerda diz que tem mas não o utiliza, embora passe por lá regularmente.
O de direita leu e adorou o Código da Vinci.
O de esquerda leu, também gostou, mas roga-lhe pragas se houver pessoas por perto.
O de direita, de verão, sai com camisa aberta até ao umbigo (ou decote) e gola eriçada.
O de esquerda sai de noite com a mesma roupa com que saíu de dia.
O de direita conduz o carro xuning, aquele com luzes de néon e kisomba aos berros.
O de esquerda acha que o Titanic é o pior filme da história dos piores filmes.
O de direita gosta de dançar.
O de esquerda prefere falar.
O de direita é mais bonito/a de noite.
O de esquerda é mais bonito/a de dia.
O De DiReItA eXcReVe AxIm NaS mEnXaGeNx.
O de esquerda foge do Algarve em Agosto.
O de direita é o Algarve em Agosto.
O de direita, no dia de natal, diz que recebeu 27 prendas depois de ir à missa do galo.
O de esquerda, ressacado, diz que o vinho estava óptimo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Um Quarteto no País das Maravilhas

Sugestão de acompanhamento musical:
The Koln Concert – Keith Jarrett

I

À chegada para a sessão das 21h15, o átrio do Quarteto enquadra-nos numa espécie de América perdida. Lembra um qualquer café da route 66, cheio de vidas que já não são e algum estoico bebendo as suas desventuras ao balcão de um bar. La Niebla en las Palmeras é o filme que escolhemos da amostra de novo cinema espanhol, que o festival audiovisual número-projecta exibe nas salas do Quarteto. O Ricardo, com quem fui, pagou o meu café porque evidentemente levei o cartão jovem e não o do multibanco. Chávena pousada, casa de banho para refrescar a garganta com água, sala 3.

Mas eis que recebemos silêncio e escuro. Alí - num teatro onde a luz sempre brilha no início de um trailer abafado pelas piadas de algum esperto que sempre sonhou em ser comediante - silêncio e escuro. Julgamos que não haverá sessão, a sala tem um aspecto fúnebre e agora, que reparo nisto, também achei os corredores diferentes e aliás tristes. Mas de tristeza não é feita esta história que segue o novelo mágico do Cinema Paraíso. Já diz o povo: sala de projecção aberta, invasão pela certa.
- E a saúde dessa máquina, chefe?
- Nunca deu problemas em 30 anos! E nos grandes centros comerciais é a mesma!
Sorrimos e pedimos para espreitar mais um pouco a janelinha mágica que mergulha na sala dos sonhos e “saiam que o filme vai começar”. É mais a vontade que nós temos de pintar bonito do que, claramente, a simpatia daquele projeccionista. Mas tem de ser como no cinema. São ligadas as luzes baixas e o ecrã exibe uma imagem detida, com stop e play como opções visíveis no canto superior direito.
- Ei, será que..?
- Não, `tás maluco Rui – isso nunca acontece.
E respirei fundo, para entrar cedo no enredo. Li a sinopse, “isto fala sobre fragmentos biográficos de um físico-historiador-fotógrafo que nasceu em 1905 e aparentemente ainda vive: a narrativa repousa em acontecimentos marcantes da sua vida, fazendo uma revista do século XX através do jogo entre o valor da imagem e a memória”, parece interessante.

1) O filme está mesmo em formato DVD: Play
2) É projectada uma dança flutuante com figuras geométricas e um frenezim psicadélico
3) (Hummm mas a sinopse dizia que...)
4) O projeccionista entra pela sala e pede desculpa pelo formato não ser o adequado
5) O filme recomeça, procuro traços da sinopse – zero, mas esta alienação é terapeutica
6) Surrealismo desenfreado, com o rosto de uma mulher metamorfozeado em romãs
7) (Desconfio que este filme.. hummm..)
8) Aterra uma voz à Leonard Cohen, fala em “cavernas verdes, gotas eléctricas”
9) (Continuo a ach...)
10) A pancada cósmica do Syd Barrett era de menino ao pé deste realizador
11) Já não acho nada, levaram-me (deixei-me levar)
12) O filme termina com “A gravidade é uma maldição da qual nos livramos ardendo”
13) O DVD volta ao início, não há sinal de luzes baixas e a viagem recomeça. Ficamos.
14) 10 minutos depois saímos e o projeccionista aproxima-se
15) “Desculpem houve um contratempo e passámos Tira tu reloj al agua – gostaram?”
16) “Sim já que fala nisso apetece-me explodir num cubo mágico habitado por duendes”
17) “Vieram pela sinopse do outro? Amanhã exibimo-lo, estão convidados!”
18) “Ah, `tá tudo - cá estaremos!”

II

E estivemos. No dia seguinte chegámos ao Quarteto com o imaginário preenchido por uma passadeira vermelha, meninas escandalosas com champagne e bolos. Afinal de contas, tínhamos o nosso nome na guest-list (papel rasgado de um bloco A5 e com os nossos nomes escritos em diagonal). Fomos directos ao senhor da bilheteira, que de imediato nos reconheceu. "Façam favor, sala 2!"
Tudo corria, assim, pelo melhor, se eu não tivesse reparado que, ao nosso lado, dois portugueses e uma espanhola trocavam ideias sobre o filme que ainda desconheciam que não iriam ver. Fiz a minha boa acção do dia, ela - natural de Granada (local de rodagem de Tira tu reloj al agua) - lamentou a troca não alertada de fitas (DVD`s, perdão) de que o senhor da bilheteira tinha perfeito conhecimento, e “que va, entonces vamos a ver que ofrese esa Niebla en las Palmeras de que hablas con tanta chispa”.
É um facto que achei a sinopse muito interessante.
Mas ao dirigirmo-nos para a sala, um rapaz com barba por fazer-feita adverte-nos para um ligeiro atraso na exibição do filme face à hora previamente marcada.
- Temos um ligeiro problema com o som, daqui a nada chamar-vos-emos.
- Tudo bem chefe, vamos ao café.
Devolvo ao Ricardo a cortesia do café pago e sentamo-nos. 15 minutos volvidos, o sinal esperado com uma mão a chamar-nos de polegar encolhido e os restantes quatro dedos num vaivém nervoso. Pertencia ao mesmo rapaz de barba por fazer-feita.
- Ah não sei se sabem mas o filme de ontem é o que vai passar hoje.
- Sim já sabíamos e aqui a espanhola de Granada e seus amigos acabaram de saber.
Entramos, e ao sentar espreguiço-me sem maneiras e já nem estranhamos o Play e o filme começa. Uma bela e unida família, era a foto a tirar àquele quadro.
O filme é interessante e colorido, vemos que o surrealismo bizarro de ontem está mais calmo com voz e existem pelo menos projectos de um fio condutor na narrativa. O realizador vive obcecado pela morte, quer fugir dela mas também deste mundo e nunca esqueceu o seu primeiro amor de infância.
É um romântico. Acaba o 4º capítulo, vamos virar para o 5º que se intitula “cor” e..., e..., e nada. A imagem pára.
Pergunto ao Ricardo se aquilo será tipo free-jazz e o realizador teve vontade de parar o filme porque sim de forma a que os intelectuais depois, a discutir o tema em sítios sem vida, lhe chamem arte e ele seja tido como artista - o que não é necessariamente uma e a mesma coisa. Ele acha que eu tenho razão, mas começo a estranhar a coisa e o grupo com a espanhola também portanto saio da sala e chamo o projeccionisa. O anjo surge de imediato, envergando uma camisola que diz “ganhei o óscar vitalício de maior tromba do universo vivo e nem sei como se lembraram de associar o verbo viver ao meu focinho vegetal.”
- Olhe desculpe, o filme está com algum problema - sugiro.
- Não tem nada que ver com isso – atira-me o senhor, com algum carinho
- Não? Então tem que ver com o quê? – devolvo, com cara de nenuco
- Não tem nada que ver com isso – e fechou atrás de si a porta que dá entrada para o seu pequeno império e aliás na minha cara.

Feliz e contente, voltei à sala e presenciei um espectáculo aos trambolhões de erase and rewind que culminava, invariavelmente, na imagem parada relativa ao início do 5º capítulo intitulado “cor”. E não foi senão cerca de dez minutos volvidos que o senhor dos dedos nervosos, com barba feita-por fazer, entrou pela sala e dissertou sobre causas e nem tanto sobre consequências.
- Temos dois dvd`s com este filme, pode ser um problema no leitor de DVD`s porque ele já passou aqui e não deu problemas. Nenhuns, mesmo! Vou tentar outro leitor, aguardem só um momento.
De regresso pouco depois - e com o filme a patinar a preto e branco pelo 4º capítulo que eu e o Ricardo já fazíamos por adivinhar a cada plano repetido - o senhor dos dedos nervosos perguntou quanto tempo demorava cada um e se não valeria a pena tentar que ele chegasse naturalmente ao corte para o 5º, intitulado "cor". Foi aí que não pude deixar de observar que tudo corrreria pelo melhor se o capítulo em questão não se chamasse "cor" e que aquele mesmo plano apresentava, à instantes, uns vermelhos bem arrojados junto à porta que também lá estava - de tez acastanhada e próxima de uma lâmpada de luz baixa que a mim e ao meu amigo me pareceu reflectir um lilás-figo maduro – algo que agora não acontecia.

Após uma pausa colorida de rosto avermelhado para digerir a informação cromática, o senhor certificou-se de que estava a ouvir bem e perguntou-me se o filme estaria a preto e branco, ao que respondi “sim” e ele voltou à pausa colorida do avermelhado rosto.
E assim se manteve. Percebendo a ideia, o Ricardo e eu levantámo-nos e saída ao que logo atrás seguiram de perto os comoventemente bem-dispostos portugueses com a espanhola natural de Granada, que se tinha dirigido ao Quarteto para ver Tira tu reloj al agua, rodado em Granada, e acabava de saír antes do final de La niebla en las Palmeras porque nenhum dos DVD`s funcionava.
Entre o riso e o cansaço, escorregámos em passo-chaplin para a saída, sempre na expectativa de que a pausa colorida do senhor dos dedos nervosos fosse apenas um tranpolim para uma dissertação (que nos parecia adequada) sobre consequências.
Mas quando o senhor da bilheteira nos viu, na expectativa que tal acontecesse, rapidamente investiu que nós não tínhamos comprado bilhete e portanto nada nos haveria a ser ressarcido, ao contrário do que acontecia com a espanhola e seus amigos.
Despedimo-nos deles com um sorriso de quatro euros, um filme bizarro imposto e 2/3 do visado, soubemos ainda qual era a função do tal senhor que mantinha uma pausa colorida e de rosto avermelhado - quando alguém lhe disse “desenrasca-te com os bilhetes, o director do festival és tú” e voltámos para casa satisfeitos com mais uma aventura no Quarteto.


III

Bem, a verdade é que não estávamos propriamente a rebolar no chão e às gargalhadas de mãos na barriga com o sucedido mas eu e o ricardo parecíamos teimar em rir da coisa. Como um amigo de quem verdadeiramente se gosta e, como tal, se acha piada aos defeitos ao invés de se lhes apontar o dedo de censura. E o Quarteto é isso, um amigo de rua, atracado ao seu passado estrutural e experiente na técnica do desenrasca de modo a que o maior número de fitas ou DVD`s inéditos passem à frente dos irrisórios pares de olhos que os testemunham.
Hoje recebi no meu e-mail um terno convite de amizade directamente de Pristina, através de uma pessoa cujo My Space entra com o riso incessante e maquiavélico de vampiros sobre um fundo negro, com bonecos negros e letras a dar para o escuro e que só não eram mesmo negras porque nada se veria. Buh.
Kosovices à parte, a ASAE (ou melhor, asae – como uma amiga minha refere que a entidade em questão deve ser tradada) fechou o Quarteto e a famosa Tasca da Ginjinha, no Rossio. Não haverá mais aventuras, por tempo indeterminado, nem possibilidade de acharmos piada aos defeitos do nosso amigo Quarteto. Lisboetas e turistas tiram fotos a uma fachada sem vida, em vez de pedir a ginja com ou sem fruto. Does PIDE ring a bell?

IV

Se duvidas houvesse de que estive a sonhar este tempo todo, eis senão quando na passada sexta-feira, dia 09 de Novembro de 2007, a TVI encerra o Jornal Nacional com a notícia “David Lynch vai estar em Portugal”. E com honras de directo no Casino Estoril, na sequência da gala de encerramento do festival europeu de cinema que ali decorreu entre os dias 08 e 17 de Novembro.
Tenho ainda marcas no dedo indicador direito das mordidelas que desferi no referido coto, não estivesse eu a planar noutro mundo. E a prova de que tal, de facto, sucedia - é que logo de seguida entrou em cena O Prédio do Vasco, logo seguido do thriller diário de Um Casamento de Sonho. Foi aí que pude respirar fundo, com a consciência de que tudo estava onde esteve.

R.C

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

2084

Sugestão de acompanhamento musical:
Un dernier verre (por la route) - Beirut

Foi numa noite de inverno-verão que a minha avó, sempre disposta a farejar algo que teima em nos escapar entre os olhos, viu uma nave espacial a descer sobre o quintal do vizinho. Como diz um frequentador assíduo da rua Morais Soares, em Arroios-Lisboa, “o dia do juízo final estava aí”. Os “escaravelhos gigantes” que ele vira “ao ler o Apocalypse” - com os quais eu fazia festas de gozo privado enquanto acenava que sim – tinham chegado.

Ou não.

Cinco trolhas saíram da nave e correram na nossa direcção, com vontade evidente de causar estragos. Atrás seguia um senhor baixo, calvo (dir-se-ia que mais volume abundava nas suas sobrancelhas do que propriamente no couro, de tal forma pouco cabeludo) nariz vermelho e achatado. Era o empreiteiro, talvez sexagenário.
Ao ritmo ginasta e autoritário do indicador direito, suado e sempre a varrer a testa alagada, este homem incentivava os trolhas a invadir as propriedades da vizinhança sem que algo os pudesse deter. Estes obedeciam de pronto, irrompendo também pela minha num processo feroz, esmagando tudo o que fosse tomado como obstáculo à sua empresa: “estamos à procura de irregularidades” – esclarecera-nos o senhor empreiteiro.
Ali perto, do outro lado da rua, uma senhora estancou – assustada – enquanto escondia a sua filha-criança por dentro do casaco de cabedal que era longo e que era negro e que lhe corria os contornos das pernas até morder o chão. Carregava em si um pânico visível, que lhe enchera de tal forma os pulmões com ar que, ao dar-se conta de quem ali estava, nem conseguiu devolvê-lo à atmosfera numa só golfada.
Os trolhas continuavam, lavrando tudo o que lhes cheirava a irregularidades - sem sorte até ao instante proposto. Enquanto isso, a senhora dirigiu-se ao meu encontro e questionou-me se aquela equipa "seria de cá". Respondi-lhe que provavelmente não, pelos modos e disposição física aqueles indivíduos de porte loiro e gigantesco deveriam ser de uma zona situada mais a leste, “a Polónia”.
Ao ouvir este nome, o grupo travou o trabalho e a discórdia sobre origens emergiu como traço primeiro e transversal. Uma facção dizia ser de Viseu, outros reclamavam ter nascido em Algoz e o próprio senhor empreiteiro reivindicava que seriam todos de Abrantes, terra onde teria inclusive um café na avenida expo`98 chamado O Gil é gay. Nem me dignei a perguntar por que razão não poderia ter, cada um, nascido num sítio diferente – gente maluca.
Por essa altura, cerca de 30 minutos após a aterragem da nave espacial, os cinco trolhas saíram das cinco casas que compõem a minha vizinhança com zero provas de irregularidades por nós efectuadas. “Reparámos em alguns desvios, mas nada de grande relevo senhor empreiteiro” – disseram ao chegar junto a nós, grupo de vizinhos que rodeava o indivíduo em questão.

Visivelmente satisfeito com o facto, o senhor-do-dedo-indicador-ginasta foi ao bolso direito do seu casaco de flanela azul e tirou um maço de tabaco: em seguida enxutou os seus trolhas de volta para a nave espacial, acendeu um cigarro e sugeriu que estes passassem o resto da noite a investigar irregularidades em pontos-chave da noite lisboeta, como "o Elefante Rosa”. E reiterou, após o anúncio contestado, que iria dormir ali na rua - naquela noite, porque "tinha sentia a falta de respirar num sítio puro como aquele – vasto de poesia selvagem e gente boa que nunca estragou a alma com os demónios que por aí andam a traír a doutrina”.

Os vizinhos dispersaram, a minha avó não e tive para mim que tudo aquilo era muito estranho.
Ainda assim, enquanto espectador batido de fábulas várias mas com estômago, o que me lembrou de momento foi comer uma bela ceia bem regada, pois todo eu era fome. Convidei o senhor do dedo a entrar na minha casa, feita em mil e um cacos regulares.
- Bucha e cervejinha, senhor empreiteiro?
- Venha ela, camarada.
- E eu filho, sou verde!?

R.C

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Serbia

Sugestão de acompanhamento musical:
Bulgarian Chicks - Balkan Beat Box

A viagem foi longa.
Exaustos, o facto de termos chegado foi, por si só, um triunfo – entre nós emergia uma sede triunfal por destruir fígado e petiscar simpatias. Tínhamos prioridade.
As ruas eram frias, piso em barro de lama, sempre noite e as pessoas observavam – estupefactas – o nosso alheamento turístico perante o rebentamento compulsivo de bombas ao redor da cidade. Talvez uma vila, no Kosovo.

O entusiasmo era grande, como convém nestas fugas ao lento assassínio quotidiano chamado rotinatédio. A rotinatédio é um problema com solução e, no caso, passaria por vários motivos que desde logo captaram o nosso interesse. Nem que fosse a análise estética aos habitantes daquela localidade, tão distante de acordo com o sexo de cada um.
Os homens tinham um aspecto carnavalesco, de servente embrutecido pelos modos do seu pedreiro – usavam bonés publicitando bombas de gasolina e um bigode privado de companhia capilar no rosto. Nunca cruzavam o seu olhar com o nosso. Já as mulheres eram vaidosas e deslumbrantes - explodindo de brilho por cada raio de luz artificial que lhes descia sobre o rosto atrevido.

Percebi isso certa noite, em que os tentáculos mortíferos da rotinatédio haviam conseguido agarrar o nosso entusiasmo pela diferença. Uma noite em que o rebentamento de bombas já era visto como acontecimento prioritário, o fígado seria tratado como um menino e petisco de simpatias, nem vê-lo.
O caminho entre Alvor e a Praia da Rocha tinha sido transferido para esta vila, onde rebentavam bombas entre semi-deusas, semi-nuas, (semi-louco senhor doutor). E numa noite em que regressávamos a casa, frustrados pela falta de diversão que aquele local, afinal, parecia proporcionar aos seus visitantes, tomei a dianteira do nosso grupo numa fuga filosófico-amuada pela noite. Nunca vi céu tão pouco estrelado numa noite de lua cheia. Dir-se-ia que não teve coragem para se vestir de gala no andar de cima, quando a cave estava em guerra. (Se assim foi, aqui fica a minha mais sentida vénia).

Vejo um grupo de três raparigas aproximar-se. Chegam e perguntam-me, sem rodeios, se queria ficar com elas. O discurso pareceu-me selvagem, docemente primitivo e a resposta voltou em gesto quando dei a mão a uma delas, com olhos celestiais. Além de me parecerem perfeitamente tresloucadas, partilhavam traços que desde logo o nosso grupo (de pessoas sem rosto) - que entretanto se juntara - rapidamente teve como consensuais: perturbadoramente belas e com uma demanda comovente pelo pénis desconhecido.
E assim foi, logo que entrámos nos carros das meninas que – durante o caminho – percebi serem sérvias. Bem, na verdade fui só eu que o resto do pessoal tinha, de algum modo, o seu transporte. O trajecto foi engraçado e, passados cerca de 30 minutos, chegámos ao cimo de uma colina que me parecia claramente situada noutro planeta. Aí, o reencontro com os meus amigos e um estranho ritual no qual todas as pessoas se dividiam em grupos para ir urinar – encosta abaixo. Como ritual pré-jantar, pensei, ao contemplar uma enorme mesa que ali se encontrava, repleta de simpatias e cheia de potencial para destruir fígado. Quando regressei ao alto da colina, uma convidada inesperada: a Diana Bértolo. Aproximei-me:
- Olá dianinhas.
- Vai à merda!

R.C

terça-feira, 30 de outubro de 2007

The Note

Sugestão de acompanhamento musical:
Second, minute or hour - Jack Peñate

“Out the door step
Down the stairs
`Round the corner”

You’re enjoying a celestial moment: “Wouldn’t it be great that all people should misbehave? That’d probably leave art critics pretty jobless, right?” As i agree with you, a chinese rubber - stole from the chinese store near the chinese neighborhood that’s crowded with Brazilians – picks my hand and harmlessly hit you in the nose.

That’s in Lisbon –

You fancy a walk down a Bairro Alto`s street, after a few smoking knock-outs at your electric-heated bedroom, and get dazzled in small wonders. To have someone who can get you a couple of laughs with pointless fairytales. “Buy them, if necessary – come on!”
All the things you want are exceedingly simple to predict, but in order to get them – that’s where the rob lies. Women seem to find talent very sexy. And you want it bad – as normal things make you scared. A few things do.
I`ll tell you that three clouds are starring at your sea sized lips, pushing each other for the better view of it. Your easy going, yet suspicious and mean two-headed personality will obviously believe it. “Where, where??”

We move to a smokey aired bar. My first time here, and probably your last since you’re moving abroad. The pub’s quiet, but we`re not alone. (Oh, you`ve just hit the glass entrance badly as the push and pull concepts mean nothing to you whatsoever!)
There’s a guy sitting in the dark corner of the bar, just near the toilets. He’s got long dark hair, seems to have a broken nose and wears a yellow t-shirt saying dirty little rock star. He didn’t see the hitting glass thing, but you’re not aware of it. Simultaneously, the thought of marrying him crosses your mind out loud as you’re dead scared of even talk to him. I`ll say “Honey, you taste really sweet - look at him”.
He got up and approaches us. You’re face turns orange, so effortlessly orange that you can’t even simulate a sudden toilet needed run with the argument of having a terrible nightmare last night, where you saw Morrisey chasing a turkey with a bloody fork.

You’re forehead hit’s the table and you wake up. Not only you’re bipolar, but now you also fall asleep dreaming dreams as if. You can’t believe it – “you`re mean, are you joking with me?”
- Hey`a, give us two pints mate! Let’s have a toast to the pointless - i say –
- Hummm if Amy Whinehouse was here right now, i’d tell her that you had Bonjovi in
your mp3 for quite some time. That’d be amazing, wouldn’t it? –

- If those kids who play in that amazingly talented band named Kook`s were here, i would lock them with you in this very pub’s bathroom for two weeks so you could all celebrate their useless little ways of being rock n` roll teddy bears –

You feel like dancing so two shots of vodka land in our table. Then two more of absinth and you feel ready to sing, instead of dancing. We move into a Karaoke bar named “In the Mood for Candies” and none of us notice that it`s a gay pub. There`s a guy with a pink bald head on the piano, playing the blues. You tell him to stop, “`cause these are my five minutes of fame (apart from the fact that i`m going to be an acclaimed music journalist – shhhhhttttt!)”
You first start with Sloppy Joe’s “Six Little Monsters” and in the middle of the core a sudden deadly mood flies throughout the pub, as your throat yell’s Roy Robinson’s “Crying”.
What’s wrong with you!?
Ohh, i see…
In the meantime, all people head to the stage and start crying over you and i had to do my daily good action by screaming at them: “Hey, you know what? She`s bipolar! -
So give us two shots of vodka and get the fuck out of here!”
You start laughing as a maniac, not only because of this, as a damned big moustache was making out with a policeman that you know. Oh, there’s another reason: the piano man is waving at me.
You`re mean. We leave.

Our next stop, a buisy café full of brilliant carachters where we, starved people, order four cheese toasties that i actually ate them all - as you got yourself locked up in the toilettes doing what you know you did. Next thing we know, we woke up in a garden’s bench full of pigeons and lovely old couples around us, doing their morning walk. The sun`d work his way on us so badly, that we laughed for our lives looking at each other’s half red faces.
“Hey, what’s that?” – I ask you
A Jack Daniel`s full bottle was just next to us, stuck on that garden bench by a long string. It also had a small piece of paper in the bottom.

“I never thought you could beat me in a pint shot, Sophie.
P.S – we`ll beat the bad guys!
George Walker B. (a man of honour)”

R.C

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sobre vinagre e sua ditadura

Sugestão de acompanhamento musical:
Anthropolgy – Bud Powell Trio


Hoje foi um dia tremendo.

Abri os olhos cedo, precocemente frustrado por quase me ter lembrado dos sonhos que construira até então e plenamente convencido que era cedo. O relógio indicava 16h00 - “merda, faltei ao curso com o que engano tudo e todos sob o signo de fazer algo da minha vida até Janeiro”.
Como de costume Chiado e as minhas pernas arrastaram-me para a FNAC, onde assisti a uma conferência sobre escrita humorística; convidados brasileiros e esse génio da parvoíce chamado Nuno Markl: aprendi finalmente, (tinha os sentidos ávidos de educação) que a língua brasileira tem muito mais piada que a nossa. Ainda assim, o Markl é que sabe.

Foi grávido de fome que, ao 3º dia, terminei de consumir “Os “Subterrâneos” – mas com dois de intervalo, o que me chumba - e perdi aproximadamente 87 minutos para escolher algo onde gastar dinheiro. O voto caíu no “Legendary Town Hall Concert” de Charlie Parker e Dizzy Gillespie – Kerouac fará “tum tum tum tum tum” nas estrelas – e em “O Poço e o Pêndulo”, título taciturno-medonho de Edgar Allan Poe. Com um aspecto escanzelado e olhar de vagabundo anémico, cheguei a casa e devorei enlatados com muito vinagre e alguma (pouca) salada.

Ultimamente ando a consumir vinagre em quantidades psiquiátricas.

Entretanto o pessoal cá de casa celebrava a vida a jogar ténis virtual, ao que me fechei no quarto com bebop e um digestivo.
Lufada de ar fesco neste azedume claustrofóbico.
No final do concerto, durante o qual não fiz rigorosamente nada senão beber e tum tum tum com o pé esquerdo, atirei o “Barbeiro de Sevilha” para dentro do leitor de CD`s com a ingenuidade de tentar perceber o fascínio e estiquei-me na minha cama range-tudo a ler Poe; assim que a ópera adormeceu, virei para a “Mensagem”.
Deus, o mar (Deus), o céu (Deus), D. Sebastião (Deus), os Descobrimentos (com D grande), o Mostrengo (humm...), a pátria (D. Sebastião, Deus), o mar (Deus). Acabei de ser Pessoa há 10 minutos.
Eu disse tentar perceber.

Rui Coelho

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O Uivo do Trovador

Sim. Que desperdício é começar os textos por não, sim.

Sim, era um jogo decisivo para o Sporting. Como de costume, cavalgava-se rumo ao apito final a um ritmo frenético e o resultado estava dividido. Na nossa sala de estar, em Portimão, eu e o meu pai num sofrimento idiota. Partilhamos esta doença, aparentemente sem cura, de sofrer por um clube de futebol como se algum acto de bruxaria levasse as sardinhas do Algarve, em pleno verão.
Puxando pelas pistas, e tendo em conta o enquadramento actual da patologia, ela poderia muito bem, entre outras coisas, estar relacionada com a obesidade que o Pedro Barbosa leva no rabo. É que o “Panhonha”, (como carinhosamente lhe chamamos lá em casa) era o único jogador presente em campo (fora o Sá Pinto) e, a espaços, o único a criar algum lance passível de golo – sendo que nesses lances acabava sempre por se despistar, rogando pragas ao rabo-chaimite.
O desespero.
Estávamos já nos descontos e não havia forma de chegar à vitória. Foi aí que o milagre anti-gordura aconteceu: o “Panhonha” sai a jogar da grande área da equipa adversária, envergando o equipamento desta e o seu rabo-Pavilhão Atlântico, pelo que o Sá Pinto, sem demonstrar incómodo algum pela repentina mudança de cores do companheiro e apelando ao coração de leão que lhe bate do lado esquerdo, foi ao chão roubar-lhe a bola e chutou para a baliza orfã de guarda-redes. Gooooloooo !!!!

Buumm !!!! A explosão, a histeria, a loucura, os gritos, a rouquidão, o coração do meu pai, o Sá... o meu Pai!
Corri para ele, o meu pai, e perguntei-lhe o que se passava mas não recebia resposta sonora - A comunicação era feita por gesto e gemido, o meu pai por esta altura de tez albina, apontando nervosamente para o lado esquerdo enquanto respirava em golfadas de violino desafinado - pedi-lhe para se tentar acalmar, o meu pai enquanto tentava que o meu coração não fugisse do peito – também me sentia indisposto pelo meu pai e fui parar a um descampado onde encontrei um antigo colega de futebol no Portimonense: O Jorge, que era guarda-redes.
Cumprimentámo-nos e ele convidou-me a entrar na tenda onde morava. Tinha como certo deparar-me com uma espelunca desarrumada e sebosa, habitada por répteis a emanar essência de erva – mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, dei comigo numa tenda arrumada, na qual jaziam sacos-cama harmoniosamente colocados de modo paralelo-num-espaço-de-não-mais-que-distância-nenhuma-entre-si, as paredes desnecessária e admiravelmente borrifadas com Ajax e o Bimbo a ressonar que nem um menino.
Bimbo, outro colega dos meus tempos de futebolista. 1,92 metros (2,14 m) a desfazer de tudo e todos, espírito burlesco que varria as posições do lado esquerdo e ataque da nossa equipa – tanto ele como o Jorge eram dois míudos que dominaram, desde cedo, o ofício do malandro. Pois hoje eles partilhavam uma tenda positivamente escuteira, como manda a respectiva ortodoxia.

Resolvi sair da tenda com uma necessidade absoluta de respirar aquele pó fresco do descampado, disfarçado do seu impacto estético pelo anoitecer. Não estava, confesso, de modo algum preparado para observar um cenário daqueles e, num assomo de filosofia corporal, olhei as estrelas. Vejo várias luzes brancas, intermentes, a cair. Desciam em voo picado, numa velocidade incompreensível e portanto vegetei até ouvir a explosão apocalíptica.
O acidente tinha ocorrido talvez a uns 400 metros dalí, pelo que corri para dentro da tenda de forma a proteger-me dos esperados estilhaços. O Bimbo ainda dormia. Num ápice, os destroços do avião caíam ao redor da tenda, e não deveria faltar muito para que atingissem algo que mexesse.
Sugeri que fossemos embora, que o argumento da limpeza não servia muito bem o contexto actual mas, surpreendentemente... não, ninguém queria sair dalí. Nesse momento já éramos cerca de 10 pessoas e tinha para mim que mais ninguém haveria entrado lá dentro pelo que as dúvidas, essas, teriam de esperar pela atenção do descomplicador numa outra ocasião.
Acordámos o Bimbo que, tranquilo, perguntou ao Jorge pela sua mãe.
Este devolveu que não era altura para brincadeiras e aproveitei a seriedade do momento para insistir em sairmos dali para fora que nem cangurus entusiasmados.
O eco continuou negativo e, frustrado pela pouca razoabilidade daquelas pessoas, dirigi-me em passos suicidas para a rua, com o solene intuito de correr pela vida. E então caíu-me tudo.
Se, naquele momento, me encontrasse contente diante da Rachel Weisz, é ponto assente que a lei da gravidade actuaria em mim com a ciência que o nosso amigo Isaac reclamou.
Gêlo, tortura nos testículos.
Uma interminável nave espacial descia sobre o descampado onde o Jorge e o Bimbo moravam, numa tenda arrumadinha. Aterrara a menos de 50 metros de mim e o fogo, que crescia a uma força imparável, parecia servir de cenário a uma celebração alienígena de tomada de posse - golpe de humanidade, substituição dos actores terrestres.
Receei pelo pior, quando a porta desabrochou no descampado e, acto contínuo, várias criaturas saíram da nave em passo acelerado. Seriam certamente monstros gigantescos, com sete olhos e muitos poderes malévolos que vinham com o objectivo horrendo de, pelo menos, nos levar a Marta da OK Teleseguro, acusar o Scolari de esmurrar jogadores (quando ele só protege os atletas) e proibir o Rui Reininho de beber.

Só que eram patos.
E gansos. E vacas com chifres no nariz, de perto seguidas por cães desdentados e bois rockeiros.
Diante dos nossos olhos, tão somente animais a correr pelo descampado, joganda à macaca e cantando a machadinha num dialecto tonto.
O trovador, se pessimista, uiva em vão pois tudo corria pelo melhor.
Diante dos nossos olhos de cordeiro aliviado - tão somente animais a celebrar a vida, imersos no vapor de um avião em chamas.

Rui Coelho

Sugestão de acompanhamento musical:

The End – The Doors

Prefácio

Sou uma pessoa de tarde, duas de noite e três ou quatro de madrugada – de manhã estou a dormir. Quando as pálpebras cedem começo a ver fábulas, tingidas a raciocínio pendurado e sem juízo. Ou seja, uma pessoa perfeitamente normal como qualquer um de nós, com a diferença de me dar ao trabalho de escrever sobre isto.
Neste transe desconcertante, claro, reina a lei do mais idiota e ninguém percebe muito bem o que se passa. Mas está tudo bem, porque aqui as dúvidas aceitam qualquer justificação.
Uma palavra em especial para a minha antiga equipa na blogosfera.
Depois do projecto idealista enquanto banda, o crescimento que leva aos projectos a solo. Não a desintegração, mas o crescimento necessariamente individual que terá sempre por base uma plataforma de onde tudo nasceu.
O reencontro está marcado.
Um pontapé com algum desvio para vocês.

Rui Coelho